William Freire[1]
Que o regime jurídico da mineração é uma colcha de retalhos, cheio de falhas (apesar de se considerar natural haver limitações e lacunas no sistema normativo), não há dúvidas. Mas poucos estão atentos às falhas do Regulamento do Código de Mineração, muito seguido pela Administração Pública.
Este artigo apresentará apenas um exemplo, mas significativo.
O Art. 65 do Código de Mineração dispõe:
“Art. 65. Será declarada a caducidade da autorização de pesquisa, ou da concessão de lavra, desde que verificadas quaisquer das seguintes infrações: (…)
d) prosseguimento de lavra ambiciosa ou de extração de substância não compreendida no Decreto de Lavra, apesar de advertência e multa; e”
O art. 102 do Regulamento do Código de Mineração dispõe:
“Art. 102 – A caducidade da autorização de pesquisa ou da concessão de lavra será declarada desde que verificada qualquer das seguintes infrações: (…)
III – prática de lavra ambiciosa ou de extração de substância não compreendida no decreto de lavra, independentemente de advertência ou multa;”
A divergência entre os textos é gritante, sendo necessário chamar a atenção para o absurdo.
O correto, quanto há divergência de redação entre o Código e seu Regulamento, é seguir o Código.
Há doutrina e jurisprudência fartas nesse sentido.
Apenas para exemplificar, segue orientação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça:
“ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Princípio da legalidade. A Administração Pública submete-se ao princípio da legalidade, sobrepondo-se ao regulamento a lei em sentido formal e material.”[i]
“O decreto, como norma secundária, que tem função eminentemente regulamentar, conforme o art. 84, inc. IV, da Constituição Federal, não pode contrariar ou extrapolar a lei, norma primária. Não pode restringir os direitos nela preconizados. Isso porque tão-somente a lei, em caráter inicial, tem o poder de inovar no ordenamento jurídico.”[ii]
“É sabido que o regulamento, categoria na qual o Decreto está incluído, não pode alterar disposição legal, tampouco criar obrigações diversas daquelas previstas na lei à qual ele se refere.”[iii]
Isso tudo está de acordo com o art. 5º da Constituição da República:
“Ninguém estará obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
Não bastassem a jurisprudência firme do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina reiterada, a leitura atenta do art. 65 do Código de Mineração também mostra que o legislador pretendeu punir o minerador que insistir na infração, apesar de ter sido advertido e multado.
Na aplicação de sanção ao minerador, o DNPM deve respeitar o art. 37 da Constituição Federal, que já fazia parte dos princípios norteadores da Administração Pública:
A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também (…)
Não bastasse este aspecto de flagrante inconstitucionalidade, há outro argumento igualmente interessante. A regra do Regulamento não consegue ultrapassar o crivo da proporcionalidade: trata-se de sanção extremamente dura para quem já alcançou a fase de lavra, investiu milhões e posicionou-se como colaborador da União na ampliação das riquezas minerais nacionais. Portanto, também sob este aspecto, a orientação do Código de Mineração mostra-se mais equilibrada.
Este é apenas um dos muitos exemplos de abusos contidos na regulamentação infralegal, contra os quais a comunidade jurídica mineral deve ficar alerta, a fim de que esteja pronta para os rechaçar.
[1] WILLIAM FREIRE é advogado formado pela UFMG. Diretor do Departamento do Direito das Minas e Energia do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Professor de Direito Minerário em diversos cursos de pós-graduação. Autor de vários livros sobre Direito Minerário e Direito Ambiental, entre eles o Código de Mineração Anotado, o Comentários ao Código de Mineração, o Direito Ambiental Brasileiro, Fundamentals of Mining Law e o Gestão de Crises e Negociações Ambientais. Publicou mais de cem artigos e proferiu dezenas de palestras sobre Direito Minerário, inclusive no exterior. É Árbitro da CAMARB, CAMINAS e Fundador do IBDM — Instituto Brasileiro de Direito Minerário.
[i] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 28.033/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. Data do Julgamento 23.04.2014.
[ii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 22828/SC. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. Publicado no DJe de 19/05/2008.
[iii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.151.739/CE. Relatora Min. Nancy Andrigui. Publicado no DJe de 17.02.2012.