Princípios à moda da casa

fev 1, 2022 | Artigos Gerais

Quatro leituras estimularam-me a escrever este artigo:

i. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises, de Felipe Recondo e Luiz Weber.1
ii. O Retorno ao positivismo jurídico: Reflexões de um juiz desencantado, de Fábio R. Gomes, 2020.2
iii. Voto recente na ADI 6.524, que tem por objeto a análise do cabimento da reeleição de Rodrigo Maia e de Davi Alcolumbre para a presidência da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente.
iv. Princípios do Direito: Um guia de A a Z, de André Cipreste de Vargas.3

No livro Os Onze, os autores relatam interessante caso ocorrido durante uma votação no STF:

“Ayres Brito valeu-se de metáforas para se comunicar com o público externo e convencer a clientela interna. ‘Isso está me parecendo um salto triplo carpado hermenêutico’, ele disparou contra Cezar Peluso no julgamento da Lei da Ficha Limpa, quando o ministro, derrotado no mérito, julgava inconstitucional a integralidade da legislação por um alegado vício de tramitação do projeto no Congresso.”

Do livro O retorno ao positivismo jurídico: Reflexões de um juiz desencantado, extraem-se interessantes passagens:

“[…]o vale-tudo principiológico de agora.”
“[…] Constituição extremamente principiológica, que vem sendo usada e abusada pelo Poder Judiciário.”
“[…] ainda disparou dois fantasmagóricos torpedos principiológicos, não escritos em lugar algum do ordenamento jurídico brasileiro.” “As alquimias hermenêuticas levadas a cabo nesta seara transmutaram o direito do trabalho em uma folha em branco.”
“[…] princípio ad hoc da estabilização financeira não me deixa mentir.”

“E, para culminar, a inexistência de uma regra previamente positivada não é mais empecilho para a imposição judicial de proibições, anulações e/ou indenizações. Basta o juiz lançar mão do princípio de sua preferência, esteja ele escrito ou – pasme – seja ele inventado para a ocasião.”

“[…] Acredito que a confiança no direito aumentará, sobretudo quando recomeçarmos a levar as regras jurídicas a sério, deixando-as ‘entrincheiradas’. Do contrário, ao desprezá-las e tentar se orientar por meio de princípios gasosos – que mais se parecem com o antigo éter que a tudo explicava – o indivíduo leigo e, também, o juiz estarão irremediavelmente perdidos.”

“[…] Pensar de outro modo só faz aumentar a pressão sobre os juízes para que eles pisoteiem os textos normativos (de onde as regras são extraídas) ao sabor da principiologia da moda. De acordo com esta visão instrumentalista do pós-positivismo, sempre que eu não gostar do que estiver positivado com algum grau de determinação linguística, bastará escantear o dispositivo, aplicando o que considero ser o seu propósito.”

“[…] o lado com o pior argumento positivista incentivará o juiz a abandonar e a distorcer o texto. Algo semelhante a dar-lhes a mediunidade capaz de ultrapassar a fronteira físico-institucional entre o direito e a moral.”

“Estamos sujeitos a um ‘oba-oba decisório.”

“[…] uso abundante de princípios retóricos para a manipulação do direito.”

“[…] a utilização de princípios etéreos pelo TST teve os seus dias contados.”

“[…] posso afirmar, sem medo de errar, que o atual estado de coisas produziu três consequências práticas letais para qualquer modelo de direito: uma medonha insegurança jurídica, uma avalanche de processos e uma crise institucional sem precedentes.”

“Esta proposta tipicamente pós-positivista é um arrasa-quarteirão normativo […].”

“O Estado Democrático acabará sendo substituído pelo Estado dos Juízes Olímpicos, pois a Constituição se transforma em um ‘ovo jurídico originário’ […].”

“Somando-se a isso a fluidez semântica nas alturas, e temos princípios que funcionam como normas de etiqueta institucional.”

“Alguns juízes até tentam fazer o que acham certo, movidos pelas mais cândidas intenções morais. Mas todos eles, sem exceção, o fazem cobertos pela mais bela retórica principiológica, subjetiva, circular e gasosa.”

Agora o julgamento da ADI 6.524. Para alcançar seu salto triplo carpado hermenêutico, o voto registrou o vocábulo princípio 71 vezes. Exemplos:

Princípio Republicano; Princípio da Isonomia; Princípios que desenvolve a cláusula de separação dos Poderes; Princípio da Conformidade Funcional; Princípio da Igualdade; Princípio da Proibição da Discriminação; Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, entre outros. (Quais seriam?); Princípio da Moralidade Pública; Princípio Democrático de Estruturação do Poder Público; Princípio de Proibição de Reeleição a Cargos do Executivo; Princípio Democrático; Princípio da Separação dos Poderes; Princípio da Autonomia das Câmaras; Princípio da Forma Republicana Representativa; Princípio da Simetria; Princípio de Reprodução Obrigatória; Princípio da Alternância do Poder; Princípio da Razoabilidade; Princípio da Autonomia Organizacional; Princípio da Publicidade; Princípio da Soberania do Plenário; Princípio Majoritário; Princípio da Anterioridade em Relação à Mudança da Legislação Eleitoral; Princípio da Anualidade em Relação à Mudança da Legislação Eleitoral; Princípio da Anterioridade em Relação à Alteração de Jurisprudência Eleitoral; Princípio da Anualidade em Relação à Alteração de Jurisprudência Eleitoral; Princípio da Segurança Jurídica; Princípio da Inafastabilidade.

Parece que não leram o livro do Magistrado Fábio, que cita Neil Maccormick (Argumentação jurídica e teoria do Direito. Tradução de Conrado Hübner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008):

Há boas razões para ele [o texto escrito em formato de regra] ser lido a partir da presunção de que suas palavras contêm o significado mais óbvio. Mas isso não é só. Mesmo se formos nos afastar da obviedade, não devemos importar outras palavras ou ideias “totalmente ausentes do texto escrito na lei”.

Segue a conclusão de Fábio R. Gomes: “Banana não deve ser compreendida como maçã, a cor azul não deve ser lida como vermelha, o aberto não deve transformar-se em fechado ou o quadrado em redondo.” E vedado significa, segundo o Aurélio, proibido, não permitido, impedido.

No livro Princípios do Direito: Um guia de A a Z, o autor relaciona nada menos que 826 princípios, o dobro disso de princípios correlatos.

Em breve leitura já se percebe a ausência de alguns princípios importantes, como o Princípio da Boa-fé Ambiental4 e muitos outros relacionados em alguns votos proferidos no processo mencionado (Princípio da Conformidade Funcional, Princípio de Reprodução Obrigatória, por exemplo). Podemos, então, concluir que essa lista de princípios pode chegar facilmente a dois mil.

Apresenta-se, aqui, apenas um cardápio resumido a partir da obra de André Cipreste de Vargas, contendo os princípios relacionados apenas na letra A, para se ter uma ideia de como anda o menu de princípios:

Princípio do Absolutismo; – Princípio da Abstração (P. da Abstração Cartular, P. da Abstração das Obrigações Cambiais); Princípio do Acesso Equitativo aos Recursos Naturais; Princípio da Actio Nata (P. Actio Nata); Princípio Acusatório (P. do Sistema Acusatório); Princípio da Adaptabilidade do Procedimento (P. da Adaptabilidade, P. da Adaptabilidade do Procedimento às Necessidades da Causa, P. da Adaptabilidade do Processo, P. da Elasticidade, P. da Flexibilidade do Processo, P. da Flexibilização do Procedimento; Princípio da Adequação; Princípio da Adequação das Formas; Princípio da Adequação do Processo (P. da Adequação, P. da Adequação das Formas, P. da Aptidão, P. da Conformidade, P. da Idoneidade, P. da Pertinência); Princípio da Adequação Setorial Negociada; Princípio da Adequação Social; Princípio da Adequada Representação (P. da Adequada Certificação da Ação Coletiva, P. da Adequada Legitimação, P. do Controle Judicial da Legitimação Coletiva, P. da Legitimação, P. da Representação Adequada, P. da Representatividade Adequada); Princípio da Aderência (P. da Ambulatoriedade, P. do Direito de Sequela, P. da Especialização, P. da Inerência, P. da Sequela); Princípio da Aderência ao Território (P. da Territorialidade, P. da Territorialidade da Jurisdição e da Soberania); Princípio do Adimplemento Substancial; Princípio da Adjudicação Compulsória (P. da Adjudicação Compulsória ao Vencedor); Princípio da Afetividade; Princípio da Affectio Societatis; Princípio da Alteridade (P. da Assunção dos Riscos pelo Empregador); Princípio da Alteridade (P. da Transcendentalidade); Princípio da Alternatividade (Direito Penal); Princípio da Alternatividade; Princípio da Ampla Defesa (P. do Direito de Defesa, P. da Garantia de Defesa); Princípio da Ampla Divulgação da Demanda (P. da Adequada Notificação dos Membros do Grupo, P. da Ampla Divulgação da Demanda Coletiva, P. da Informação aos Órgãos Competentes, P. da Informação e Publicidade Adequadas, P. da Notificação Adequada); Princípio da Anterioridade Comum (P. da Anterioridade Anual, P. da Anterioridade de Exercício, P. da Anterioridade do Exercício Financeiro); Princípio da Anterioridade Eleitoral (P. da Anterioridade, P. da Anterioridade Constitucional em Matéria Eleitoral, P. da Anterioridade da Lei Eleitoral, P. da Anterioridade em Matéria Eleitoral, P. da Antinomia Eleitoral, P. da Anualidade, P. da Anualidade Eleitoral, P. da Anualidade em Matéria Constitucional, P. da Segurança das Relações Jurídicas); Princípio da Anterioridade Especial; Princípio da Anterioridade da Legislatura; Princípio da Anterioridade Nonagesimal (P. da Anterioridade Mínima, P. da Anterioridade Mitigada, P. da Anterioridade Qualificada, P. da Espera Nonagesimal, P. da Não Surpresa Tributária, P. da Noventena); Princípio da Anterioridade Penal (P. da Anterioridade da Lei Penal); Princípio da Anterioridade do Registro (P. da Anterioridade, P. First Come, First Served); Princípio da Anterioridade Tributária (P. da Anterioridade, P. da Eficácia Diferida); Princípio da Anualidade (P. da Anterioridade Orçamentária, P. da Anualidade Orçamentária, P. Orçamentário, P. do Orçamento, P. da Periodicidade, P. da Temporalidade); Princípio da Anulação da Decisão Recorrida (P. da Anulação); Princípio da Aplicação Imediata das Normas Processuais (P. da Aplicação Imediata, P da Aplicação Imediata das Normas Processuais Penais, P. do Efeito Imediato, P. do Efeito Imediato da Lei Processual Penal, P. do Tempus Regit Actum); Princípio da Aplicação Residual do Código de Processo Civil (P. da Integratividade do Microssistema, P. da Integração do Microssistema, P. do Microssistema); Princípio do Aproveitamento dos Atos Processuais (P. do Aproveitamento dos Atos Processuais Praticados, P. do Aproveitamento Máximo dos Atos Processuais, P. da Conservação dos Atos Processuais, P. da Conservação dos Atos Processuais Úteis, P. da Sanabilidade); Princípio da Aptidão para a Prova (P. da Aptidão da Prova, P. da Distribuição Dinâmica do Ônus da Prova); Princípio da Aquisição Processual da Prova (P. da Aquisição dos Meios de Prova, P. da Aquisição Processual, P. da Aquisição da Prova, P. da Comunhão dos Meios de Prova, P. da Comunhão da Prova); Princípio da Assimilação; Princípio da Assistência Jurídica Integral e Gratuita; Princípio da Atipicidade (P. da Atipicidade das Medidas Executivas, P. da Atipicidade dos Meios Executivos); Princípio da Atipicidade do Processo Coletivo (P. da Atipicidade, P. da Máxima Amplitude, P. da Não Taxatividade da Ação Coletiva, P. da Não Taxatividade do Processo Coletivo); Princípio da Atipicidade da Prova (P. da Atipicidade dos Meios de Prova); Princípio do Ato Jurídico Perfeito (P. da Intangibilidade do Ato Jurídico Perfeito); Princípio dos Atos Decisórios Juridicamente Relevantes (P. das Decisões Juridicamente Relevantes); Princípio da Atualização Monetária; Princípio da Ausência de Autoridade Superior; Princípio da Ausência de Hierarquia entre as Normas; Princípio Aut Dedere Aut Judicarei; Princípio da Autodeterminação dos Povos; Princípio da Autoexecutoriedade do Ato de Polícia; Princípio da Autonomia Administrativa; Princípio da Autonomia entre Cognição e Execução (P. da Autonomia); Princípio da Autonomia dos Entes Federativos (P. da Autonomia, P. da Autonomia Municipal, P. da Autonomia Política, P. da Autonomia Político Administrativa dos Entes Federativos); Princípio da Autonomia dos Estabelecimentos; Princípio da Autonomia dos Litisconsortes; Princípio da Autonomia das Obrigações Cambiais (P. da Autonomia, P. da Autonomia das Obrigações Cambiarias, P. da Autonomia dos Títulos de Crédito, P. da Independência dos Títulos de Crédito); Princípio da Autonomia Partidária (P. da Autonomia dos Partidos, P. da Autonomia dos Partidos Políticos, P. da Liberdade Partidária, P. da Liberdade de Organização); Princípio da Autonomia Patrimonial (P. da Autonomia Patrimonial da Pessoa Jurídica, P. da Autonomia Patrimonial da Sociedade Empresária, P. da Autonomia da Pessoa Coletiva, P. da Autonomia Subjetiva da Pessoa Coletiva); Princípio da Autonomia da Reconvenção; Princípio da Autonomia Sindical (P. da Não Intervenção Estatal); Princípio da Autonomia da Vontade (P. da Autonomia, P. da Autonomia Privada, P. da Autonomia Privada das Partes, P. da Autonomia da Vontade dos Contratos, P. da Autonomia da Vontade Privada, P. da Liberdade de Contratar); Princípio da Autonomia Privada; Princípio da Autonomia da Cláusula de Convenção (P. da Autonomia da Cláusula Compromissória, P. da Autonomia da Cláusula da Convenção de Arbitragem em Relação ao Contrato); Princípio da Autonomia da Vontade (P. da Autodeterminação, P. da Autonomia das Partes, P. da Autonomia das Vontades, P. da Consensualidade, P. do Consensualismo, P. do Consensualismo Processual, P. da Independência, P. da Independência e Autonomia, P. da Liberdade, P. da Liberdade das Partes, P. do Poder de Decisão das Partes, P. da Voluntariedade); Princípio da Autoridade das Partes (P. Dispositivo das Partes, P. do Respeito à Ordem Pública e as Leis Vigentes); Princípio da Autoridade do Poder Judiciário (P. da Autoridade das Decisões do Poder Judiciário); Princípio da Autoritariedade; Princípio da Autorização Legal (P. da Autorização Legislativa); Princípio da Autorresponsabilidade (P. da Autorresponsabilidade das Partes); Princípio da Autotutela.

Vamos à refeição do dia.

Entrada
Ragu principiológico em leito de folhas tenras

Prato principal
Massa de princípios à carbonara
ou
Picadinho de filé ao molho axiológico

Sobremesa
Couli de principes em pudim de hermenêutica

Bon appétit !

1 RECONDO, Felipe. WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras. 2019, p. 107.
2 GOMES, Fábio R. O retorno ao positivismo jurídico: Reflexões de um juiz desencantado. E-book Kindle. 2020.
3 VARGAS, André Cipreste de. Princípios do Direito: Um guia de A a Z. E-book Kindle. 2020.
4 Em razão da aplicação do Princípio da Boa-Fé Ambiental: Ninguém iniciará atividade potencialmente poluidora sem licença do órgão ambiental; rejeitar-se-á a leviandade na discussão de temas ambientais; ninguém causará poluição em níveis tais que possam resultar em danos à saúde humana; condenar-se-ão as Unidades de Conservação Ambiental de papel; rejeitar-se-á a hipocrisia ambiental; ninguém alegará desconhecimento que pichar edificação ou monumento urbano é ilegal; ninguém inutilizará bem especialmente protegido por lei; não admitirá uso de bandeira supostamente ambiental para a defesa de interesses particulares ou estrangeiro; ninguém tentará exercer atividade proibida em Unidade de Conservação de Proteção Integral; ninguém declamará contra a sustentabilidade ambiental etc.